Professor Romualdo Flávio Dropa

domingo, 31 de março de 2013

Direito autopoiético, razão comunicativa em Habermas e Poder Judiciário autopoiético à luz da Teoria dos Sistemas Sociais vivos de Niklas Luhmann

Romualdo Flávio Dropa
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grosa
Especialista em Direito e Memória pela Universidade Estadual de Ponta Grossa
Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná.



Lembra-nos o professor Lenio Luiz Streck[1] que, ainda sob o efeito positivista, nossas faculdades de Direito adotam currículos que privilegiam a formação de tecnólogos do Direito: escravos da lei e meros intérpretes desta, sem visão crítica mais aprofundada. Segundo o Doutor Lenio, a política educativa na área jurídica estimula a educação “manualesca” em detrimento à leitura crítica, profunda, reflexiva dos tratados, da bibliografia clássica e dos pensadores da humanidade. Trata-se de fast food educativo, formação imediatista, com visão empresarial na sua maioria, descomprometidos com a construção de pensadores e profissionais polivalentes, críticos, autônomos e interdependentes.
De acordo com Dworkin[2], o Direito deriva dos direitos morais e que os juízes, sendo aplicadores do Direito, precisam tornar-se filósofos uma vez que eles e a ciência jurídica lidam com questões que os filósofos se deparam há séculos. O Direito, sendo ciência social aplicada, precisa se responsabilizar e resolver estas questões filosóficas.
Dworkin[3] propõe a idéia de que igualdade significa tratar a todos de forma igual, e não igualmente, como dizem alguns. Como exposto, tratar igualmente ou desigualmente é algo muito vago, muito indeterminado. Ao passo que tratar de forma igual, percebe-se que esta igualdade refere-se a cada pessoa, individualmente considerada.
Importante lembrar que a dogmática jurídica, a configuração de um ensino meramente codicista, muito longe de ensinar o acadêmico de direito a formular raciocínios jurídicos, críticos e reflexivos buscando respostas aos problemas e questões que permeiam o universo humano, acabou por limitar a percepção de mundo.
Hans Kelsen trouxe a visão de um Direito integral, procurando abandonar todos os demais fatores que circundam o Direito, quais sejam: moral, política, religião, dentre outros, tratando de despir a Ciência Jurídica de qualquer influência sociológica que venha a macular a pureza do ordenamento jurídico e criando a idéia do direito como um sistema estático.
Esta visão tecnicista do Direito não se refletiu apenas em juristas igualmente técnicos, mas também no próprio ensino da Ciência Jurídica. Professores de Direito, em grande parte, desconhecem a hermenêutica constitucional, a capacidade de interpretação além do numerus clausus presentes nos códigos, cooperando na formação de bacharéis conservadores, despolitizados, alheios à realidade social e, consequentemente, na formação dos próprios advogados, magistrados e membros do Ministério Público, simplesmente “robotizados” e alienados.
Constroem-se, assim, juristas pouco interessados na reflexão filosófica que envolve a causa humanista do Direito, com análise hermenêutica e a interpretação da norma ou dos princípios jurídicos, os quais se esquecem que como futuros advogados, juízes, promotores, delegados, dentre outros caminhos na fascinante carreira jurídica, deverão justamente buscar a análise reflexiva envolvendo o caso concreto.
Some-se a isso a alienação de estudantes e bacharéis com uma percepção de mundo apartada das intensas transformações vividas pelo direito em nossa sociedade, os quais se configuram em futuros juristas de visão limitada, pequena, estreita, fechados hermeticamente num mundo que visa tão somente a competitividade profissional. São “operadores do Direito” sem qualquer comprometimento com a importância social de seu papel na materialização dos ideais de justiça social e distributiva.
São profissionais que fogem da realidade humanizante do Direito, que fecham os olhos às novas vertentes do conhecimento jurídico, principalmente os de caráter humanista da ciência jurídica e não mais dogmática e meramente positivista. São profissionais fossilizados num sistema jurídico engessado, pessoas meramente robotizadas para a reprodução de um tecnicismo frio e sem viço na vida profissional.
O resultado disso tudo é uma massa de profissionais que refletem uma cultura técnico-profissional defasada, vivida e incorporada nas faculdades de direito e que é incapaz de compreender a dinâmica e a dimensão dos (novos) conflitos sociais.
Ao mesmo tempo em que juristas mal preparados para a utilização da ferramenta hermenêutica passam a fazer parte do sistema jurídico, uma outra problemática se configura no horizonte do Direito: existe uma vasta lacuna envolvendo a questão da homossexualidade e o Direito Brasileiro, evidentemente no que diz respeito à homossexualidade e seus efeitos jurídicos.
Por outro lado, vive-se numa realidade onde novos mundos são possíveis. O enfoque sistêmico de Niklas Luhmann é uma destas novas possibilidades de se compreender a sociedade humana e, igualmente, abandonar a visão mecanicista de mundo. Para Luhmann, as relações sociais não podem ser compreendidas de forma isolada, pois são questões interligadas e interdependentes. Este novo paradigma busca superar o método de analise das partes em prejuízo do todo e do determinismo das relações de causa e efeito[4].
Luhmann, em sua teoria sistêmica, pretende uma universalidade que se traduz numa teoria geral do conhecimento abrangendo vários setores da sociedade, como o direito, a economia, a religião, a educacão, a etica, a politica etc, também denominados de subsistemas. Alem disso, segundo Luhmann, não é possível conhecer a realidade (os sistemas) apenas o observando: na verdade, os próprios sistemas devem observar a si mesmos e aos demais sistemas enquanto partes de seu entorno (teoria dos sistemas que se observam)[5].
Neste sentido, utilizando-se da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, é possível formular que, como todo subsistema social, o direito é constituído por comunicações.
O direito, bem como a política, insere-se como um dentre outros subsistemas e, por isso mesmo, capaz de desenvolver códigos próprios para desempenharem suas funções recíprocas no interior da sociedade. O primeiro [...] utilizando-se do código licitude/ilicitude, funciona para a estabilização de expectativas de comportamento, ao passo que o segundo, ao fazer uso do código governo/oposição, atua para condensar a formação das opiniões públicas de tal maneira que seja possível a tomada de decisões que vinculem coletivamente[6].
Para Luhmann, os sistemas sociais são considerados unidades autopoiéticas de comunicação, ou seja, têm como unidade elementar a comunicação e como estruturas, as expectativas. Os sistemas sociais constituem-se na medida em que se diferenciam do ambiente, dos sistemas da vida e psíquicos.
As operações fundamentais dos sistemas sociais se caracterizam por comunicações, enquanto que as operações fundamentais dos sistemas psíquicos são idéias, pensamentos. As comunicações dos sistemas sociais se reproduzem por meio de novas comunicações, e idéias ou pensamentos se reproduzem por meio de novas idéias e pensamentos numa infinita dialética. Alem das fronteiras dos sistemas sociais não existe comunicação e tampouco fora dos sistemas psíquicos. Ambos os sistemas operam fechados, no sentido que as operações que produzem os novos elementos do sistema dependem das operações anteriores do mesmo sistema e são, ao mesmo tempo, as condições para futuras operações. Esse fechamento é a base da autonomia do sistema o que configura a autopoiese do sistema. A comunicação não é possível sem a presença dos sistemas psíquicos.
Com o aumento da complexidade da estrutura do sistema, ocorre uma evolução funcional. Este processo evolutivo - no sentido de transformação do elemento desviante em estrutura do sistema - se perfaz quando se preenchem três condições: variação (uma comunicação desvia-se do modelo estrutural de reprodução social, o surgimento de elemento diferente dos até então existentes); seleção (a comunicação desviante pode ser rejeitada ou selecionada de forma a permitir a continuidade da reprodução desviante); e restabilização (o mecanismo que assegura a compatibilização da nova expectativa com o sistema, tornando-se parte de uma unidade de reprodução autoreferencial)[7].
A teoria identifica três tipos de sociedade, conforme a evolução do sistema social, sendo que na sociedade moderna, de alta complexidade, dinâmica e abertura para o futuro, a evolução conduz a uma diferenciação funcional, ou melhor, ao surgimento de sistemas parciais autônomos, cada um constituindo uma unidade de reprodução auto-referencialmente fechada e fazendo parte do ambiente dos outros sistemas sociais. A sociedade moderna caracteriza-se, portanto, pela sua alta complexidade (presença de mais possibilidades do que as que são suscetíveis de ser realizadas); pela supercontingência (a contingência significa que as possibilidades poderiam ser diferentes das apontados) e a diferenciação sistêmico-funcional, como, por exemplo, a emergência de um sistema jurídico autônomo[8].


Para Luhmann, o mais amplo e complexo sistema social é a sociedade, constituída por todas as comunicações existentes. Enquanto sistema mais abstrato, a sociedade possibilita a existência das demais classes de sistemas sociais situadas nos níveis inferiores de abstração (interações e organizações). E enquanto sistema global, a sociedade dá suporte, através das operações de diferenciação/especialização de funções, aos vários sistemas abstratos parciais (subsistemas): economia, política, direito, religião, educação, moral, ciência, etc.[9].
Segundo Luhmann, o mundo oferece um “excesso de possibilidades”, o que promove uma multiplicidade de mundos, de visões com complexa tradução homogeneizadora.
Nos contornos da sociedade moderna, complexamente descentralizada e com alto grau de diferenciação funcional, o intuito de se estabelecer uma moralidade unilateral para o ambiente corre o sério risco de barrar as premissas para a comunicação, gerando ineficiência na construção de padrões aceitáveis de entendimento sobre a matéria. Em outras palavras, negando respeito aos diferentes subsistemas sociais de exporem suas concepções internas sobre o risco ecológico e impedindo a comunicação a problemática ambiental não adquire condições de penetrar nas agendas diferenciadas que compõem o sistema sociedade.[10]
A demanda pela proteção de novos direitos leva à chamada irritabilidade do sistema jurídico para conflitos passem a ser processados por meio dos códigos próprios do jurídico, daí o surgimento em toda parte de leis que tutelam os chamados interesses metaindividuais. Os conflitos da sociedade pos-moderna exigem cada vez mais a presença do Estado para que os medie através do direito positivado.
As irritações que o ambiente estabelece com o sistema jurídico leva a clara necessidade de se estabelecer novas premissas decisórias para a solução destes conflitos e a criação de novos paradigmas.
Assim, o reconhecimento do direito das denominadas “minorias” vem promover a redução da complexidade e também a estabilização das instabilidades de que estes interesses são detentores, ou seja, permitir a estabilização da contigência (possibilidade de que várias opções sejam aceitas como a mais adequada para o caso, fruto da decisão tomada) e, portanto, da incerteza que lhes é característica.
A Teoria dos Sistemas sugere uma visão da sociedade moderna, tomando por base a sua complexidade e a estabilização de certas esferas de comunicacao especificas, como por exemplo, o direito, acompanhado de outros subsistemas do sistema social total como a economia, a política, a educação, dentre outros.
Os sistemas sociais não são compartimentos estanques, afirmando Luhmann que existe um fechamento operacional, em combinação com uma abertura cognitiva de cada sistema autônomo com seu meio ambiente. Assim, os sistemas autopoieticos se encontram em acoplamento estrutural com o meio ambiente.[11]
Não existe hierarquia, autarquia, isolamento e nem total independência entre os sistemas e seus respectivos meios ambientes. Os sistemas operam a partir de códigos binários de acordo com a função de cada sistema.
No caso do direito, esse código binário se configura através dos pólos lícito/ilícito, na educação pelo conhecimento/ignorância, na política pelo poder/não poder e assim, sucessivamente para cada meio ambiente auto-referente. Através destas operações binárias cada sistema controla o que nele penetra e de que forma ocorre esta penetração, bem como regula o que não pode atravessar suas fronteiras efetuando uma seleção indispensável ao controle da complexidade com a qual tem de trabalhar.[12]
O aumento crescente da complexidade do entorno, e conseqüentemente, da própria complexidade reduzida do sistema social, faz com que este se diferencie em subsistemas sociais voltados ao desempenho de funções específicas, segundo um código binário operacional próprio e os respectivos meios de comunicação simbolicamente generalizados (definidos como os instrumentos indicativos da unidade da diferença de um dado para o sistema): o Direito (código lícito/ilícito), a economia (código lucro/prejuízo) a política (código progressista/conservador), a ciência (código verdadeiro/falso), da educação (ensino/não ensino), da moral (código bem/mal) cada um com função e operação autopoiética próprias. Esta especialização de funções contribui decisivamente para a redução da crescente complexidade social. E ao mesmo tempo aumenta a complexidade do sistema global, que contém agora mais sistemas com as respectivas parcelas de complexidade[13].
Luhmann pretendeu elaborar uma teoria sociológica que seja totalmente capaz de observar e apresentar soluções para se reduzir a crescente complexidade da sociedade pos-moderna. Para ele, não são os indivíduos que constituem os sistemas sociais, mas sim as comunicações. Informação leva à comunicação, a qual é elemento de produção autopoiética do sistema social: somente a comunicação gera comunicação (desenvolvimento de mais comunicação a partir da comunicação).[14]
Comunicações conectam com comunicações. O sistema cessa - deixa de existir - quando a comunicação acaba. O fato de que somente a comunicação reproduz comunicação exclui os estados psicológicos e biológicos como elementos constitutivos e intrínsecos da operação comunicativa. A despeito de estar fora do sistema social, o indivíduo é elemento fundamental na comunicação, dado que os sistemas sociais necessitam da vida para existir: aquela somente ocorre se mediada pelo sistema psíquico. Tanto o sistema biológico quanto o psíquico devem estar presentes para que a comunicação possa emergir.  É que somente a comunicação gera comunicação, mas não é capaz de percebê-la. A consciência é o único sistema com capacidade de perceber a comunicação, apesar de não gerá-la.  Em suma: a consciência é imprescindível para a comunicação, de modo que o sistema social e o sistema psíquico estão estruturalmente acoplados (interpenetração). É desta forma que se dá a relação entre indivíduo e sociedade[15].
Porem, a comunicação pode ser interrompida também por outros elementos e, ao invés da estabilização do sistema, o que ocorre e justamente a continuidade de sua complexidade.
Convém destacarmos algumas diferenças entre Luhman e Habermas, pois as proximidades teóricas são muito grandes. Luhman possui idéias sistêmicas enquanto Habermas possui idéias estruturais. Para Luhman existem três tipos de sistemas autopoiéticos, quais sejam: a) sistema social – que seria a comunicação; b) sistema psíquico – que seria a operação do pensamento e c) sistema orgânico – que seria as operações vitais. Neste contexto, a sociedade é uma pequena parte do ser humano. Habermas, por sua vez, estuda o agir comunicativo, procedimentalizando como um agir característico.[16]
E justamente na ausência de comunicação presente no sistema social que produz a exclusão social de indivíduos homossexuais, os quais têm muitos de seus direitos usurpados, como no caso das uniões homoafetivas envolvendo separação de bens, direitos de sucessão, adoção de crianças, bem como certa indiferença do Judiciário a respeito da gravidade dos crimes de ódio cometidos em virtude da homofobia, ofendendo os princípios da cidadania e do acesso à Justiça, da Democracia, Justiça Distributiva, dos Direitos Humanos e da dimensão social do Direito.
Isto ocorre pela falta de comunicação entre o sistema Direito e o ambiente.
Conforme lembra Marcelo Neves,

A conquista de novos direitos de cidadania e a sua ampliação passam por três momentos jurídico-políticos. Em primeiro lugar, surge a semântica dos direitos humanos, como exigência moral ou valorativa do reconhecimento e satisfação de determinadas expectativas normativas que emergem na sociedade e são avaliadas como imprescindíveis à integração dos indivíduos e grupos. A semântica dos direitos humanos pressupõe inegavelmente tanto o desenvolvimento de representações morais universalistas, a saber, orientadas no sentido da construção e da ampliação generalizada dos direitos de cidadania, quanto a complexificação e diferenciação da sociedade em esferas autônomas de comunicação.[17]

Neste sentido, o modelo de subsistema jurídico fechado e auto-referente luhmanniano encontra obstáculos em países subdesenvolvidos, e menciona que ao contrário dos países desenvolvidos, nos periféricos existe uma alopoiese social do direito, pois ao invés do código lícito, ilícito, incidem outros códigos, pertencentes a outros subsistemas, enfim, não estando definida no Brasil a fronteira da juridicidade, como ocorre nos países desenvolvidos, em que os subsistemas sociais estão bem diferenciados funcionalmente.[18]
Aqui entra a necessidade de harmonização entre os discursos de Habermas e Luhmann, pois Habermas privilegia as ações comunicativas que têm como pano de fundo um horizonte hermenêutico ou mundo da vida formador de contextos paraprocessos racionais de entendimento. Tais processos de entendimento podem desdobrar-se em dois planos: o da comunicação trivial ou praxis comunicativa cotidiana, ao nível do mundo da vida, isenta de questionamentos; e o plano do discurso argumentativo “comunicação paradoxal” destinado a resgatar pretensões de validade a partir do momento em que o conteúdo informativo da atividade comunicativa é questionado. Trata-se, neste caso, de uma comunicação paradoxal. Por isso, a teoria do agir comunicativo também pode ser caracterizada como uma teoria discursiva da verdade, da sociedade, da moral, do direito, da comunicação, etc.
Entretanto, a intersubjetividade também pode ser tida como “resultado intermitente” de uma relação comunicativa frágil entre um Ego e um Alter, a qual pode se concretizar por meio de uma comunicação lingüística. Jürgen Habermas se decide por esta segunda possibilidade de interpretação da intersubjetividade. E como primeira conseqüência, ele não pode mais tomar como ponto de partida a idéia de uma subjetividade fundada apenas nas operações mentais solitárias de um sujeito que constitui e desoculta monologicamente o mundo. Para ele, a intersubjetividade é, ao mesmo tempo, pressuposto e resultado, intermitente, da linguagem comum.
Desta forma, a intersubjetividade dá origem e fundamenta o agir comunicativo entre um Alter e um Ego, que é a base de qualquer processo social. Convem salientar, no entanto, que Jürgen Habermas acrescenta um elemento fundamental à visão fenomenológica da intersubjetividade, dado o fato de que ele interpreta esse princípio à luz de um paradigma do agir comunicativo orientado por entendimento racional. E neste paradigma, Ego e Alter são tidos na conta de sujeitos que se socializam e se individuam mediante esse tipo específico de comunicação lingüística. Isso é possível porque eles já se encontram previamente em mundos da vida estruturados lingüisticamente que podem ser compartilhados de modo intersubjetivo.
Para Niklas Luhmann a intersubjetividade é impossível, dado o problema da dupla contingência. E neste contexto a intersubjetividade passa a ser algo improvável.
Por isso Luhmann simplesmente abandona o conceito tradicional de intersubjetividade, o qual é, no entanto, adotado por Habermas.
Luhmann se desfaz desse conceito porque o considera problemático, um “não-conceito”. Segundo ele, tal conceito se fundamenta na idéia de que a subjetividade e a intersubjetividade são co-originárias e pressupõem, além disso, uma relação dialética entre Ego e Alter.
Segundo Luhmann, o problema da dupla contingência está presente de modo virtual sempre que surge um sistema psíquico ou uma consciência capaz de experimentar sentido. E esse problema eclode explicitamente quando tal sistema psíquico se encontra com outro sistema psíquico ao qual se atribui sentido, ou com um sistema social. Nesse caso, o problema da dupla contingência se torna um problema de comunicação.
Teubner e Willke buscam compatibilizar a teoria dos sistemas de Luhmann com a teoria do agir comunicativo e a ética do consenso de Habermas, apresentando a noção de “Direito Reflexivo” onde os subsistemas não se encontram apenas em observação recíproca, mas admitindo interferências intersistêmicas. Neste sentido, lembra Marcelo Neves:

No início da década de 80, Teubner apresenta o esboço de uma teoria pós-moderna do “direito reflexivo”. Com certas alterações no projeto originário, formula no fim dos anos 80 o seu modelo de autopoiese do direito, distanciando-se, ao sustentar a pluralidade e a gradação da autopoiese jurídica, do modelo construído por Niklas Luhmann, sem dúvida o autor que mais influenciou a sua obra. A heterodoxia de Teubner em relação à teoria sistêmica leva-o, no decorrer da década seguinte, a desenvolver, sob influência também do descontrutivismo de Jacques Derrida, uma teoria em que se enfatiza o pluralismo jurídico e a heterarquia do direito no plano global, ou seja, em que se destaca a importância crescente das ordens jurídicas globais desvinculadas do Estado. Integram-se nessa configuração também os seus estudos sobre as conseqüências da privatização do direito ou das “governanças privadas” na sociedade mundial. No início deste século, Teubner passou a elaborar uma teoria das constituições civis da sociedade mundial, com impacto significativo no debate sobre ordens transnacionais.[19]

Neste consenso estaria a Constituição como vínculo estrutural entre Direito e Política (com autonomia operacional de ambos os sistemas), sendo, portanto, mecanismo de interpenetração e interferência entre dois sistemas sociais autopoiéticos.
Segundo Luhmann, o homem vive em um mundo constituído sensorialmente e dotado de complexidade e contingência. Porém, importante lembrar que, sob a ótica de Luhmann, o Direito é um sistema autopoiético que, na lição de Teubner[20], se autoreproduz sobre um código binário próprio (válido/inválido, legal/ilegal ou direito/nãodireito), estando, assim, em clausura sistêmica, porém sofrendo interferência intersistêmica, ou seja: o direito é um sistema autônomo, que opera de modo fechado, porém cognitivamente aberto às interferências vindas de outros sistemas, para filtrá-las em seu próprio código binário.
Ainda, de acordo com Teubner, O Direito constitui um sistema autopoiético de segundo grau, autonomizando-se em face da sociedade, enquanto sistema autopoiético de primeiro grau, graças à constituição auto-referencial dos seus próprios componentes sistêmicos e à articulação destes num hiperciclo.[21]
Observar o Direito como um sistema autopoiético pressupõe assimetria, desvio entre a complexidade estruturada e determinada do mundo jurídico com a supercomplexidade não estruturada e indeterminada do meio ambiente.
A referência dos sistemas sociais ao seu meio ambiente se dá através da função (expectativas normativas) e prestação (a forma de solução de conflitos diversa dos demais sistemas).
A forma de diferenciação funcional respondida pela função congruente das expectativas normativas encontra-se na institucionalização dos Direitos Fundamentais.
A constitucionalização simbólica, sendo ausente a constituição normativa, perde a validade empírica como sistema autopoiético visto que a insuficiência e incapacidade de heterorreferência na concretização normativa do texto constitucional operacionalmente autônomo em resposta às exigências do meio ambiente. 
Para Luhmann, sociedade é “um sistema social autopoiético operacionalmente fechado que inclui em si mesmo, através da comunicação, todos os demais sistemas sociais”[22]. Ou seja, a Sociedade é o sistema abrangente de todas as comunicações, que se reproduz autopoieticamente, na medida em que produz, na rede de conexão recursiva de comunicações, sempre novas (e sempre outras) comunicações.[23]
A comunicação aqui referida deve ser considerada como a síntese do processo comunicacional constituído de três etapas indissociáveis: informação, participação e compreensão, que são o produto das seleções de sentidos realizadas não pelos indivíduos isoladamente, mas no interior do próprio sistema social.[24]
Direito, assim, não apenas possui uma linguagem, mas é uma linguagem, na medida em que instrumenta uma modalidade de comunicação entre os homens, seja para ordenar situações de conflito, seja para instrumentalizar políticas”[25].



[1] Congresso Internacional de Direito Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro, 30.11.05, Rio de Janeiro, RJ.
[2] DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luis Carlos Borges. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[3] Ibidem, p. 325.
[4] CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 1996. p. 25-33; GRÜN, Ernesto. Uma vision sistêmica y cibernética del derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 19--. p. 17-22.
[5] LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoría de sistemas, Traducción de Silvia Pappe, Brunhilde Erker y Luis Felipe Segura.  Barcelona: Anthropos, 1996, pp. 55 e ss.
[6] PEDRON, Flávio Quinaud. Direito, Política e Constituição para a Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 07/02/2011.
[7] BRZEZINSKI, Maria Lúcia Navarro Lins. Em busca de novas formas de compreensão do fenômeno Jurídico: uma introdução à abordagem sistêmica de niklas Luhmann, Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, v. 4, n. 2, p.122-143, ago./dez. 2008
[8] BRZEZINSKI, Maria Lúcia Navarro Lins. Em busca de novas formas de compreensão do fenômeno Jurídico: uma introdução à abordagem sistêmica de niklas Luhmann, Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, v. 4, n. 2, p.122-143, ago./dez. 2008.
[9] CAETANO, Matheus Almeida; MACHADO, Fabio Guedes de Paula; MOURA, Bruno de Oliveira. O Direito sob a perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Disponivel em <http://www.sociologiajuridica.net.br/numero-9/227-o-direito-sob-a-perspectiva-da-teoria-dos-sistemas-de-niklas-luhmann>. Acesso em 07/02/2011.
[10] ANDRADE, THALES. Ecological Comunnication. Ambiente & Sociedade. Editora Cubo, Ano I – N.2 _1° semestre de 1998.
[11] LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Traducción: Javier Torres Nafarrate. Universidad IberoAmericana Biblioteca Francisco Xavier Clavigero, Herder: Mexico, 2006.
[12] LINS, Breno Gustavo Valadares. Brasil: 20 anos de redemocratização – uma análise da constituição federal de 1988 a partir da teoria dos sistemas sociais. Disponível em < http://ruc.udc.es/dspace/bitstream/2183/2498/1/AD-11-54.pdf> Acesso em 08/02/2011.
[13]  LINS, Breno Gustavo Valadares. Brasil: 20 anos de redemocratização – uma análise da constituição federal de 1988 a partir da teoria dos sistemas sociais. Disponível em <http://ruc.udc.es/dspace/bitstream/2183/2498/1/AD-11-54.pdf> Acesso em 08/02/2011.
[14]  Idem.
[15] CAETANO, Matheus Almeida; MACHADO, Fabio Guedes de Paula; MOURA, Bruno de Oliveira. O Direito sob a perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Disponivel em <http://www.sociologiajuridica.net.br/numero-9/227-o-direito-sob-a-perspectiva-da-teoria-dos-sistemas-de-niklas-luhmann>. Acesso em 07/02/2011.
[16] ANDRADE, THALES. Ecological Comunnication. Ambiente & Sociedade. Editora Cubo, Ano I – N.2 _1° semestre de 1998.
[17] NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Harbermas. [tradução do autor]., 2ª. Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 182.
[18] Idem, Ibidem, p. 236-244.
[19] NEVES, Marcelo. Direito, Sistema e Policontexturalidade. Disponível em <http://www.unimep.br/phpg/editora/documentos/teubner1.pdf> Acesso em 03/01/2011.
[20] TEUBNER, Gunter. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 139-140.
[21] TEUBNER, Gunter. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 53.
[22] VARGAS, João Protasio Farias Domingues de. O conceito de sociedade em Niklas Luhmann (A sociedade como sistema omnicompreensivo). Discponivel em: <http://www.protasiovargas.com.br/bdpv/tex/socluhman_mono1.htm#_ftn8.> Acesso em 07/02/2011
[23] Idem.
[24] LUHMANN, N. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Trad. Silvia Pappe y Brunhilde Erker; coord. Javier Torres Nafarrate. Rubí (Barcelona): Anthropos; México: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontifícia Universidad Javeriana, 1998. p. 141.
[25] CORREIA, Marcus Orione Goncalves; CRUZ, Renato negretti; RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.262-272, jul.-dez., 2007

Direitos fundamentais - a questão negra no Brasil

 O “problema” da abolição

Desde o dia 22 de abril de 1500, nunca mais o Brasil se viu livre da discriminação, a qual nasceu com ele. Tudo começou com os índios, passando pelos negros escravos e alcançando os nossos dias, com a discriminação dos pobres, deficientes físicos, homossexuais, mulheres, crianças e adolescentes entre outros. Mas de todos os excluídos, os negros, com toda a certeza, foram os que mais sofreram com o preconceito. Junto com os indígenas, foram as grandes vítimas no Novo Mundo, sofrendo terríveis agonias e sofrimentos, participando de lutas, morte e martírio, em busca da libertação da horrível escravidão que lhes foi imposta. Durante os três primeiros séculos de história de nosso país, foram trazidos para cá, como escravos, mais de três milhões de africanos, os quais, através da força do seu trabalho, acumularam riquezas que hoje formam o patrimônio das atuais elites econômicas brasileiras. Com a abolição da escravatura, em 1888, o Estado Brasileiro deixou os negros à mercê da concorrência do mercado capitalista. Só depois de 100 anos do fim da escravidão, e mais de 400 anos de luta do povo negro, é que este Estado se propõe a pensar  e elaborar políticas públicas para valorização dos descendentes de africanos escravizados no Brasil.
No Brasil Colônia, a base da economia e de sua riqueza estava no trabalho escravo. O Brasil foi o último país da América a abolir o terrível regime escravista, no ano de 1888, ato que condenou a Monarquia e abriu as portas para a República. Na época, o trabalho assalariado já despontava como o mais adequado à sociedade industrial em formação. Os negros, que até então não tinham outro trabalho a não ser o braçal se viram, repentinamente, sem labor ou onde morar, pois sua permanência nas terras do antigo senhor de escravos não era mais possível. Ao mesmo tempo, o Brasil abriu suas portas à mão de obra imigrante, principalmente de pessoas vindas da Europa, negligenciando os ex-escravos negros, em sua grande maioria, marginalizando-os, deixando-os sem trabalho e sem acesso à escola, refugiados em quilombos, favelas, mocambos e palafitas. De repente, os negros foram declarados livres e, após a alegria inicial, descobriram-se sem teto, trabalho e meios de sobrevivência. Durante a vida toda, os negros trabalhavam para seus senhores, nunca para si, recebendo um mínimo para sua subsistência. Com o fim da escravidão, não ocorreu aos abolicionistas a necessidade de garantir-lhes meios para sua sobrevivência nem a posse da terra para sua fixação. Favorecidos de um lado, a marginalização dos negros não acabou, apenas “mudou de roupagem”, pois sua discriminação ganhou uma outra perspectiva: o esquecimento.
A partir do capitalismo o indivíduo negro, quando não permanecia desempregado por não possuir qualificação, passou a ser utilizado em serviços que exigiam mão-de-obra pesada. De escravo, o negro passou a ser assalariado, mas não ascende, socialmente, como os brancos. A qualificação era imprescindível no regime capitalista e, justamente por apresentar mais procura do que oferta, o mercado de trabalho era seletivo, estando os negros em último lugar na ordem de preferência. Esta tendência continua, ainda, nos dias de hoje, evidentemente. Os negros, em sua grande maioria, continuam sem vez e sem voz, em trabalhos mais pesados e em regime de quase semi-escravidão, particularmente nas fazendas. Aos negros sobraram os pequenos serviços: o comércio ambulante, o conserto, o biscate e, sobretudo, os serviços pessoais.

Preconceito

O Brasil é um país de dimensões continentais, dotado de recursos inimagináveis e, em sua maioria, ainda inexplorados. Além disso, desde que se tornou uma “esperança” mundial em tempos passados, como o “Jardim do Éden” dos povos em sua maioria provenientes da Europa e que fugiam de focos de guerras e revoluções que assolaram o continente, principalmente no século XIX e atual, esta terra se transformou numa gigantesca “Arca de Noé”, acolhendo diversas raças e culturas que aqui depositaram sua confiança, sonhos e expectativas. O Brasil possui uma formação populacional altamente heterogênea em índices não experimentados por nenhuma outra nação do planeta, o que faz dele, realmente, um lugar especial e a prova viva de que é possível viver em harmonia étnica e cultural em meio a um oceano de miscigenação. Evidentemente que esta “harmonia” é relativa e deve ser observada com olhos atentos. Mas não se pode negar que o cenário nacional encontra-se livre de antecedentes históricos envolvendo atentados à bomba contra templos religiosos ou grupos racistas radicais declarados como se vê em países como Estados Unidos, França e Alemanha. O povo brasileiro, em toda a sua diversificação, é um povo uno, uma raça só oriunda de diversas outras raças, uma só entidade socio-política de larga base territorial. Mas esta aparente unidade não pode esconder uma outra realidade nacional: o racismo.
Apesar do negro ter alcançando a igualdade jurídica a partir da abolição, a desigualdade sócio-econômica com relação aos brancos se mantinha a mesma, e a ideologia de 400 anos de escravidão se mantinha forte, definindo a diferença entre os dois, sendo o negro eternamente visto como um indivíduo submisso e inferior aos brancos. Mais do que isso o negro, com o fim da escravidão, passa a ser visto como um fator de concorrência ao mercado de trabalho, a ameaça viva de tirar do branco as oportunidades que sempre lhe couberam. O preconceito racial continuou a ser exteriorizado de maneira discreta e branda e existe ainda hoje em várias regiões do Brasil, manifestando-se em maior ou menor grau, em todas as classes sociais.
     Um exemplo típico de racismo se comprova com os dados de pesquisa do Datafolha, que publicou uma pesquisa onde revela que os negros são abordados com mais freqüência em batidas policiais, recebendo mais insultos e agressões físicas do que os indivíduos brancos. Por questão desta abordagem, são igualmente mais revistados que pessoas de outra etnia. A escolaridade e a condição financeira têm pouca influência sobre a freqüência e incidência destas batidas policiais e da violência que ora se comete. Esta violência é praticada quase sempre contra indivíduos negros ou mulatos, seja na forma de ofensa verbal ou agressão física. Conclui-se que os métodos de abordagem da polícia junto ao indivíduo levam em consideração sua aparência física (vestimentas), a etnia (fatos principal) e um estereótipo completamente fora de sentido: a expressão facial da pessoal. O indivíduo que se encontra dentro da tipificação psicológica acaba fazendo parte de um sistema seletivo e discriminatório, e este indivíduo, geralmente, é pobre, negro ou mulato.
     De acordo com o criminalista Eugênio Raul Zaffaroni8, o que ocorre geralmente nestes casos de violência às camadas mais baixas da população é a aplicação da “teoria da vulnerabilidade”. Geralmente os indivíduos são pobres e desconhecem o sentido da palavra cidadania. Vivem em lugares marginalizados, onde o Estado é praticamente ausente. O papel que lhe cabe é preenchido por bandidos. A polícia não repreende a ação criminosa e aterroriza os moradores. Estes não protestam, temendo uma reação ainda mais violenta. Episódios de violência em favelas provavelmente não aconteceriam em bairros ricos, principalmente em países desenvolvidos. Segundo Zaffaroni[2], nestes países os direitos humanos são violados com menos freqüência e as pessoas menos vulneráveis (aquelas que têm status social, econômico ou cultural) caem com mais freqüência nas malhas do aparelho repressivo do que no Brasil. Nestes países, os cidadãos têm mais instrução e tornam-se menos vulneráveis aos abusos dos agentes do Estado. Este é o caminho apontado por Zaffaroni: educar para aumentar o índice de vulnerabilidade ao aparelho repressivo estatal. Num simples entendimento: justiça para todos, sem exceção.

 O negro e o mercado de trabalho no Brasil de hoje

Infelizmente, o passado escravista registrou no inconsciente coletivo a absurda noção da inferioridade do negro, criando-se um preconceito que se manifesta de diferentes formas. E isto atingiu também muitos negros, que se sentem inferiores em relação à sua condição, chegando a abominar a sua própria cor, valorizando a cultura branca como padrão ideal. Por causa das razões históricas, os negros continuam sendo um dos setores mais pobres e sofridos da sociedade brasileira. Deles foi tirada a liberdade, dificultada a conservação de sua cultura e memória e, até hoje, não foi restituída efetivamente a condição da plena cidadania.
Estudos da Fundação SEADE[3] revelam que, em 1996, havia o seguinte quadro de desemprego, só na região metropolitana de São Paulo: homens negros 77% maior que a dos brancos (20%); mulheres negras 20% em relação às brancas (15,6%). A inserção ocupacional das mulheres apresentava diferenças marcantes segundo a cor. Pouco mais de um terço das mulheres negras e 29% das pardas trabalham nos Serviços Domésticos, forma de ocupação de apenas 13% das brancas. No setor serviços estavam ocupadas 43% das negras e 36% das pardas. E na luta por trabalho, hoje, até postos de subemprego tradicionalmente ocupados pelos negros, estão em acirrada disputa pelo crescente número de desempregados. Para sobreviverem muitos afrodescendentes não encontram outro caminho que o arriscado mercado da droga e da contravenção. O país campeão de desigualdades tem grande parte de sua força de trabalho sobrevivendo em condições de subemprego, quando não de desemprego. O negro empregado acaba obtendo rendimentos inferiores aos percebidos pelo branco, sempre sendo relacionado a trabalhos com pouca qualificação. Por causa do preconceito, a mão-de-obra negra é direcionada para trabalhos domésticos e pesados, sendo a sua cor fator determinante, estando acima de sua qualificação e formação.
Ironicamente, mesmo com o preconceito vigente, o Brasil é o país com a segunda maior população negra do mundo. Mesmo com todo este contingente de indivíduos negros, poucos deles têm acesso ao que, a princípio, está disponível à população branca, como mercado de trabalho digno, escolas privadas ou universidades. Segundo o IBGE, em relação à qualidade de vida da população, o Brasil ocupa a 63ª posição no mundo. Considerando-se a população negra, o Brasil fica na 120ª posição mundial, ressaltando com isso a diferença entre os níveis de vida da população branca e da população negra. Uma pesquisa sobre desigualdade racial no Brasil, realizada pela Federação do Órgão para Assistência Social e Educacional - FASE, demonstrou índices que levam à conclusão de que a qualidade de vida da população negra está próxima a dos países mais pobres. As famílias negras ainda são marginalizadas no processo produtivo, sendo assim os seus filhos também são marginalizados. Desta forma, no momento em que a criança deveria estar na escola ela está na rua procurando sobreviver. Segundo dados do UNICEF, de 2000 menores carentes, 1600 são negros[4]. Os negros e mulatos constituem um setor desproporcionalmente alto entre os pobres, uma vez que estes representam 42,5% da população total, mas 62,4% da população pobre. A pirâmide social coloca homens brancos e mulheres brancas no topo e homens negros e mulheres negras na base, estando a mulher negra em situação ainda pior.

O negro e a educação

Quanto à educação, um relatório sobre Direitos Humanos realizado pela Organização dos Estados Americanos revelou que, em 1992 o analfabetismo entre os negros chegava à casa dos 30% e se elevava a 36,4% no Nordeste do Brasil. O relatório concluiu que problema do analfabetismo guarda relação com a falta de acesso da população negra à educação formal e o problema da abstenção escolar das crianças de raça negra é muito freqüente, já que estas são obrigadas a deixar a escola para ajudar no sustento familiar. Neste contexto, a "cor", além da "escolaridade dos pais e a renda familiar" são fatores determinantes do acesso das crianças à escola. Em relação aos avanços nos níveis de escolaridade, 4% dos negros conseguem ingressar na universidade, em comparação com 13% entre os brancos. Um exemplo da margem diferencial de acesso é dado pelas cifras referentes à Universidade de São Paulo, de cujos 50 000 estudantes em 1994, apenas 2% eram negros. A situação repete-se em diferentes universidades do país, mesmo em cidades como Salvador, com maioria populacional afro-brasileira. E quem não tem condições de adquirir uma boa formação escolar vê reduzidas as possibilidades de encontrar trabalho digno no mercado.



A violência contra o negro

No que diz respeito à violência policial no Brasil, segundo pesquisa do Datafolha, os negros são abordados com mais freqüência durante as blitz, recebem mais insultos e mais agressões físicas que os brancos. A desvantagem, revelada pela pesquisa Datafolha, não pára por aí: percentualmente, também há mais revistados negros que qualquer outro grupo étnico.
Entre os da raça negra, quase metade (48%) já foi revistada alguma vez. Desses, 21% já foram ofendidos verbalmente e 14%, agredidos fisicamente por policiais. Os pardos superam os negros em ofensas: 27% deles foram ofendidos verbalmente e 12% agredidos fisicamente. Ao todo, 46% já foram revistados alguma vez. A população branca é menos visada pela polícia. Entre estes, 34% já passaram por uma revista, 17% ouviram ofensas e 6% já foram agredidos, menos da metade da incidência entre negros. Em cada três negros, um (35%, exatamente) teme mais a polícia que os bandidos e outro teme os dois na mesma proporção, aponta o levantamento. Para os entrevistados de cor branca, somente 19% (um em cada cinco) temem mais a polícia. Quase a metade, 47%, tem mais medo dos bandidos do que da polícia.
Quanto à criminalidade, constatou-se que dos homicídios dolosos contra menores, 54% das vítimas eram menores negros e 33,9% eram brancas, inserindo-se as restantes a outras categorias. Da população dos presídios, 68% das pessoas presas têm menos de 25 anos de idade, sendo que 2/3 são negros e mulatos;
Não se pode ignorar o racismo, o preconceito, a discriminação, aceitando os estereótipos que marginalizam, oprimem, humilham e matam o povo negro. A Constituição de 1988 soube repudiar a marginalização do negro, tipificando o racismo como crime em seu artigo 5°, inciso XLII. Mesmo assim, ainda imperam no país diferentes formas de discriminação racial, velada ou ostensiva, que afetam mais da metade da população brasileira, constituída de negros ou descendentes de negros privados do pleno exercício da cidadania. Os casos de discriminação racial que vêm acontecendo durante anos neste país merecem uma apreciação mais cuidadosa por parte das autoridades, correndo o risco de se transformar (se é que já não se transformou) num ato de omissão diante do dever do direito em realizar a justiça, ao menos a justiça dos homens. O preconceito racial se constitui um grave obstáculo ao exercício do direito à igualdade. Os negros têm de lutar contra tudo aquilo que está sedimentado e que, quase inconscientemente, é posto em circulação na nossa sociedade. Para lutar contra o preconceito é preciso realizar atos que demonstrem a necessidade de que os segmentos vítimas de discriminação tenham seus direitos reconhecidos. Infelizmente, ainda estamos longe de constituir uma verdadeira democracia racial e, apesar de sermos uma nação etnicamente plural, as "minorias", sobretudo os negros, não têm o mesmo reconhecimento dos brancos colonizadores. O espaço negro é limitado e o indivíduo é discriminado, não sendo reconhecido em suas atividades. Discriminado e marginalizado, o negro é visto perante a sociedade como um indivíduo sem qualificação, limitado, estando restrito ao mercado de trabalho formal. Sempre é colocado em posições inferiores, sendo o que mais sofre com a péssima situação sócio-econômica do país, estigmatizado por ser “escuro” ou pardo. E, ironicamente, o negro é a grande força de trabalho do Brasil, porém o que mais sofre com as crises e com a discriminação. No passado, ele ajudou a construir este país para os brancos; no presente, quando tenta desfrutar o produto de seu trabalho, encontra as portas fechadas pela terra à qual se dedicou.

A situação da mulher negra

Mulheres de todas as etnias merecem nossa consideração no presente trabalho. Entretanto, vamos nos deter à condição atual da mulher negra, visto que, nestes 500 anos de Brasil, sua situação sempre beirou ao nível do descaso extremado. Não queremos dizer que mulheres de outras etnias não sofrem discriminação. Pelo contrário, todas são discriminadas, configurando a mulher, como um todo, um grupo excluído de nossa sociedade machista e patriarcal. Entretanto, a mulher negra receberá o enfoque principal porque sua situação é o reflexo do que acontece com todas as mulheres, acrescida do preconceito de cor, um peso extra que estas cidadãs brasileiras têm de suportar.
Sabemos que os escravos trazidos da África eram aproveitados nas mais diversas atividades econômicas. Negros e negras desempenhavam todas as funções nos engenhos, cuidavam da agricultura, da pecuária, trabalhavam em minas de ouro e pedras preciosas, além de participar, ativamente, no zelo das tarefas domésticas de seus proprietários.
Neste contexto, a negra escrava sempre foi vista como um bem econômico superior ao negro. Somente elas podiam gerar filhos, e isso facilitava muito o negócio dos escravos porque a importação de negros era um mercado relativamente caro. Desde o princípio do Brasil, a negra foi vista como um objeto de serventia e, numa linguagem um tanto chocante, um animal reprodutor. Entretanto, apesar do interesse no novo “escravo” prestes a nascer, os senhores proprietários de escravas não lhes permitiam qualquer descanso ou folga em seus afazeres durante o período de gravidez.
Além disso, havia o antagonismo da relação senhor e escrava. Muitos senhores se esqueciam, momentaneamente, do abismo social que os separava de suas escravas e mantinham relações sexuais com elas, muitas vezes gerando filhos que nunca eram reconhecidos. Muitas destas escravas praticavam o aborto, por vergonha ou ódio do filho que estavam gerando e com medo de represálias por parte de suas patroas. Sua dignidade seja como mulher, seja como mãe, nunca fui reconhecida.
A situação das mulheres negras, hoje, não é muito diferente se falarmos em termos de dignidade. Findo o período escravocrata, permaneceu o preconceito. Sabe-se que mulheres brancas possuem melhores oportunidades do que mulheres negras, seja no trabalho, na vida social, na escola etc. Mulheres negras são quase sempre vistas com má índole, como ladras ou prostitutas. Serviços domésticos, por exemplo, são em sua maioria realizados por mulheres negras, um reflexo de nossa herança escravocrata.
Um relatório da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada em 1990, divulgou que a taxa de analfabetismo entre as mulheres negras, naquele período, chegava ao dobro da taxa verificada para as mulheres brancas. Do total de mulheres negras maiores de cinco anos, 33,1 % estavam na condição de analfabetas. No caso das mulheres brancas esse percentual era de 18,5%. A mesma pesquisa informou que as mulheres negras ocupadas em atividades manuais perfaziam um total de 79,4%, sendo 51% envolvidas com trabalho doméstico em geral, e 28,4% como cozinheiras, serventes e lavadeiras.  Em atividades como secretariado, recepção e vendas, encontravam-se 7,4% das mulheres negras.  Já em funções técnicas, administrativas, científicas, artísticas entre 5,3 e 10%.
Uma realidade triste se nos lembrarmos que a população negra corresponde a 48% de toda a população brasileira. As mulheres negras são visivelmente excluídas de melhores oportunidades de trabalho e estão fora da equidade social deste país.

Fatos conclusivos

É preciso acabar com a noção de que os negros são sinônimos de criminalidade, samba, pagode, moda, religião (candomblé), faxineiras, serventes etc., contribuindo, no máximo, como incentivadores da preservação de sua cultura. São necessárias iniciativas para frear e acabar com o racismo no Brasil, principalmente do auxílio da escola, dos meios de comunicação e da educação em geral. O papel da escola é de fundamental importância no combate ao racismo. O racismo que se infiltrou pode, da mesma forma, ser retirado do nosso convívio se houver uma participação clara e ativa da população. Não se trata de utopia, mas de um objetivo a ser alcançado, o qual deve, acima de tudo, eliminar os seguintes dados de uma vez por todas do cenário brasileiro[5]:
·      Cerca de 60% dos negros brasileiros estão na faixa de analfabetismo;
·      Apenas 18% dos negros tem possibilidade de ingressar na universidade;
·      A expectativa de vida dos negros é de apenas 59 anos (brancos 64 anos);
·      A qualidade de vida do Brasil o leva a ocupar a 63ª posição mundial, separando só a população negra o Brasil passa a ocupar a 120ª posição;
·      15,5% dos réus negros respondem em liberdade (brancos 27%);
·      O negro é o primeiro a entrar no mercado de trabalho e o último a sair;
·      A participação do negro em áreas "elitizadas" é ínfima;
·      As mulheres negras ocupadas em atividades manuais representam 79,4% do total;
·      Apenas 60% das mulheres negras que trabalham são assalariadas;
·      As condições de moradia dos negros são quatro vezes pior que a dos brancos;
·      Dentre a população negra economicamente ativa apenas 6% está ocupada em atividades técnicas, científicas, artísticas, administrativas;
·      Muitas mulheres negras saem do país como artistas e são recebidas como prostitutas;
·      As mulheres negras estão nas piores condições de vida do país.

Sem dúvida, a melhor arma para acabar, a longo prazo, com o fantasma do racismo e da discriminação racial é a educação, seguida do respeito à igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, conscientizando o novo cidadão de que a cor da pele ou determinadas características humanas não fazem do indivíduo uma pessoa melhor ou pior, muito menos indigna dos mesmo direitos que lhe assiste. A cidadania deve ser plena para todos: negros, brancos, favelados, ricos e pobres.




[2] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Ed. Revan: Rio de Janeiro, 1991.
[3] SEADE - Secretaria Estadual de Análise de Dados, São Paulo, SP. São Paulo-Mulheres-Dados- Trabalho e Renda, Estudos Especiais, Ano-base setembro de 1997.
[4] Fonte: O racismo no Brasil - As dificuldades do negro no mercado de trabalho - http://www.infojur.ccj.ufsc.br/arquivos/Direitos_Humanos/racismo_no_brasil.html
[5] Fonte: O racismo no Brasil - As dificuldades do negro no mercado de trabalho - http://www.infojur.ccj.ufsc.br/arquivos/Direitos_Humanos/racismo_no_brasil.html